A festa começou
por Jorge Lage
Enquanto a banda "bai" jantar, o "pobo" "bai" cearRecuem aos anos cinquenta e sessenta, quando a maioria das aldeias do nosso concelho não tinham luz eléctrica. Na escuridão da noite era a candeia, o lampião, o gasómetro, o petromax e o candeeirinho de mesinha de cabeceira.
Em finais dos anos sessenta, à luz da candeia, na mesa da cozinha, li muito do
Eça, dos Lusíadas, do Gil Vicente e dos autores, perfilados na «Selecta
Literária» do António José Saraiva e Óscar Lopes, e dos medievos trovadores e
cronistas. Os meus pais viam na luz mortiça da torcida e do murraco gasto o
meu trabalho. E tínhamos pensamentos antagónicos. Eles pensavam que o meu
trabalho de estudo era mais custoso, porque «dava cabo da cabeça» e eu achava
que era um privilegiado, que o estudo era férias, porque trabalho era o braçal
e extenuante da faina campesina.
Fosse como fosse, vamos ser realistas, trabalho duro qualquer um que não fosse
mandrião ou se não tivesse deixado «morder pela mosca» o conseguia fazer. Mas,
para passar nos estudos, naquele tempo, um mínimo de inteligência era exigido,
embora os rurais mais expeditos lançavam logo a máxima: «um doutor é um burro
carregado de livros». Por isso, o Capitão Esteves se lamentava que o filho,
engenheiro agrónomo, não sabia distinguir na horta uma figueira de um
pessegueiro, para gáudio e zombaria dos empregados, cujo último rosto foi o
Frederico de Vale Madeiro.
Sobre as festas e romarias populares:
No meu tempo (ou no nosso tempo), muitos caminhos para as aldeias eram em
terra batida e aparecer por lá uma aparelhagem sonora que se ouvia aos quatro
ventos e nos quebrava a aridez do isolamento e do duro trabalho do campo era o
máximo que se podia desejar. Quando escurecia, o ruído dum pequeno motor
iluminava como por magia o largo ou terreiro da festa.
Nas festas havia sempre comida melhorada, bolos económicos, ou, pelo menos,
uns folares. Vinho era só abrir o baixo (adega) e lá estava o fiel pipito de
reserva e um copo de vidro encardido ao lado ou por baixo.
O mínimo que se exigia para haver uma festa na parte norte e nascente do
concelho de Mirandela, nos anos cinquenta até aos noventa do século XX, era
que houvesse uma aparelhagem com altifalante, geralmente a «Aparelhagem
Seixas», do Amílcar Seixas (que eu muito estimava e à irmã Beatriz), de
Contins. Era a mais solicitada e a que melhor preço fazia aos mordomos sem
cheta, mas com alguma imaginação. E quando se dizia que já estava a rugir o
lato, queria dizer-se que a festa tinha começado, com o altifalante bem
alto, debitando as modas (canções) mais solicitadas ou mais em voga.
Festa a sério, era: com missa cantada, banda de música fardada e alguns
acordes sacros, prelúdio das marchas profanas; gaiteiro ou acordeonista que,
mais tarde, foi substituído pelos conjuntos populares, como o da «Maria
Albertina» ou o «Pai e Filhos». Os altifalantes ou as aparelhagens (sonoras)
salvavam sempre qualquer festa.
Mas, como não se estava em tempo de grandes gastos, em muitas localidades,
com missa ou sem missa, com banda ou sem banda, e o conjunto era uma
estragação de dinheiro, um altifalante bem esganado, no silêncio da noite,
dava música para o arraial da aldeia e para os «pobos» vizinhos «ó redor».
Faziam muito barulho e muitas das músicas estavam desfasadas dos gostos dos
solteiros e casados das nossas aldeias. O importante era que houvesse um
bailarico no terreiro da aldeia ou num local mais reservado. Só entrava a
rapaziada mais considerada. Raparigas? Quantas mais melhores! Quando se
batia a corda de Vale de Salgueiro até Vale de Gouvinhas e já não havia
raparigas despernadas nos arraiais, Fradizela era a palavra mágica. Havia
sempre raparigas fosse na festa, fosse nos bailes ao som da grafonola ou,
mais tarde, do «vira-discos».
Este texto devia ficar por aqui. Devia, sim senhor! E a alguns mirandelenses
até dava jeito, por rivalidades de outrora dos «jogos da bola», em que os da
«Bila» eram surpreendidos pelos da Torre. Os da Torre traziam sempre um ou
outro habilidoso de Macedo e depois jogavam com gana e ganhavam. Essa
rivalidade passou para o débil tecido empresarial mirandelense e sempre que
alguém queria montar uma pequena indústria familiar ou pequena na Torre era
seduzido para o fazer em Mirandela.
Ultimamente, já se preparavam para acabar com o ensino intermunicipal
(Colégio) da Torre e alguns políticos locais de vistas curtas até batiam
palmas. Foi preciso dizer-lhes: quando acabar o ensino na Torre, acaba a
«Vila»!
Este texto foi-me inspirado por uma mestra dos Vilares e quando procuro
informação naquela corda, a Celeste Pires ajuda-me e o que não sabe bate a
outras portas.
Voltemos ao lato a rugir em regos de escrita. Na Torre Dona Chama, por
altura das festas, ouvia-se por uma semana a aparelhagem do «Mário Patudo»
(saudoso Mário Pinto da Costa), fazendo a corda intermunicipal das terras
dos concelhos de Mirandela, Macedo de Cavaleiros e Vinhais. Hoje é o filho,
César, que continua com a aparelhagem de som, aparecendo mais um ou outro na
zona de Vila Nova da Rainha.
As aldeias que não tinham poder económico para contratar a banda de música
servia-lhes a aparelhagem logo cedo. As festas rugidas tinham música e
quando esta abalava, ficava a aparelhagem para o arraial. Quando só há
missa, diz-se que a festa é séria.
O mordomo principal servia-se da aparelhagem para dar informações para os
romeiros deste teor:
- Agora, seguidamente, segue-se um intervalo. Enquanto a banda "bai" jantar, o
"pobo" "bai" cear.
O povo, sábio, regia-se pela norma de sempre: almoço, jantar e ceia.
Os discos pedidos eram o modo dos rapazes, os «admiradores», chamarem a
atenção das raparigas, dedicando-lhe «a moda que de segue».
Nas festas e romarias, não havia retretes públicas e todos se desenrascavam
consoante a ocasião, e lá iam a campo, trás duma parede ou duma lameira. Uma
vez, na Torre, um músico incauto agachou-se na lameira a obrar, deixando o
cinto de lado. Só que na hora de se ataviar ficou mais leve do miolo e
outro, aflito do ventre, deu com o atavio, entregando-o à comissão de
festas, e lá volta o mordomo a botar faladura solta:
- Atenção! atenção! O senhor músico que foi cagar à lameira que venha
levantar o seu cinto aqui na cabine de som!
Quando chegava a hora da descarga do foguetório, o mordomo atento via que o
fogo se inclinava para o campo de nabal e voltava o mordomo:
- Atenção senhor «piroténico» é fabor não chegar fogo ao nabal! Não botar
para esse lado!
As exibições junto da aparelhagem de som chegavam a forjar informação.
Lembro-me que na minha terra, no Terreiro da Poça, o lato rugia e o Carolino
Alfaiate (Fena) vai à cabine:
- Atenção, muita atenção! Carolino Alfaiate perdeu a carteira. Pede-se a
quem a encontrar o favor de a entregar. Passados uns segundos, achou que não
devia dar a ideia de teso e rematou:
- Perdeu a carteira sem dinheiro, a que tem dinheiro está aqui.
Tempos em que se vivia e se era feliz com pouco.
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