Miguel Torga,
por Fernão de Magalhães Gonçalves
OrigensS. Martinho de Anta (imagem alterada) |
Toda a vida humana é uma história da infância. E a biografia de Miguel Torga (pseudónimo de Adolfo Correia Rocha) conta-se em poucas linhas.
Autor de mais de cinquenta obras de poesia, prosa e teatro publicados desde os 21 anos, nasceu em 1907, a 12 de Agosto, dia de Santa Clara no calendário romano então vigente, em S. Martinho de Anta, Trás-os-Montes, e é do signo do Leão.
Proveniente de uma família de condição humilde, teve uma infância rural, rigorosamente primitiva e possivelmente feliz. Enredada de desacertos e desencontros, a sua adolescência foi precocemente dura e brutal, humilhante, permanentemente instável. (...)
S. Martinho de Anta em 1907
O dia 12 de Agosto de 1907, três dias antes das festas da Senhora da Azinheira, calhou numa segunda-feira e, em S. Martinho de Anta, era tempo de malhadas.
As medas de centeio e trigo alinhavam-se rigorosamente a toda a volta do Largo do Eirô, pavimentado para o efeito com a bosta de boi que cada lavrador recolhia religiosamente, ao longo do ano, numa «tanha» bojuda guardada na loja da cria. Pelo forno da tarde, o pai encontrava-se entre os varões que, seguindo as normas da entreajuda comunitária empunhavam azafamadamente malhões e manguais e a mãe, que se encontrava entre as mulheres que coanhavam o grão, teve de interromper o trabalho para o ir dar à luz.
- «Pobre pássaro que nasce em ruim ninho...», teria dito o avô paterno debruçado sobre a enxerga do berço.
Ruim ninho, com efeito, S. Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, situa-se num aberto planalto, em pleno coração do país do vinho do Douro. Por todos os caminhos que ali nos conduzem, deparamos com fachadas de solares dos séculos XVII e XVIII, e emblemas brasonados talhados em rijo granito onde a memória de uma prosperidade recente teima em permanecer no musgo e entre as urtigas que juncam as alhetas dos portões chumbados e as empenas. Eles foram longe de Lisboa, as verdadeiras «cortes na aldeia», num tempo só aparentemente longínquo destes primeiros anos do sec. XX.
O casario dispõe-se ao longo da estrada, entre a casa da Escola e a fachada da Igreja paroquial, derivando em cruz de um largo central, o Eirô, duas ou três ruas um pouco para sul e norte - a Quelha e a ladeira que leva à ermida da Senhora da Azinheira, interessante templo seiscentista precedido por uma galilé, com tecto decorado e altares recobertos de talha.
A coroa do monte onde fica a ermida prolonga-se através de um vasto e cinzento mar de pedra e giestas.
Galgando-o para oeste, não nos será difícil concluir, que cerca de 4.500 anos antes de Paracelso, já num dos mais panorâmicos sítios da futura terra de Panóias, os nossos antepassados nos julgam cúmplices e conaturalizados com a matéria astral.
Dispostos em linhas rectas e paralelas, grosseiros obeliscos, estruturas ciclópicas redondas, lascadas (típico alinhamento de menires do calcolítico) construíram ali um autêntico observatório astronómico através do qual os homens entenderam e clarificaram os seus destinos.
Destinos que as antas soterradas (mamoas), dispersas pelo monte da Senhora da Azinheira, nivelaram pela ondulação rugosa da crosta das fragas.
Das Antas se chamará, com efeito, esta terra muito antes de Caius Calpurnios Ruphinos ter cinzelado a sua inscrição votiva «Dies diebusque» no sopé de um altar do santuário romano de Panóias, já na falda oeste do planalto de S. Martinho.
Em 1907, S. Martinho de Anta era uma típica aldeia transmontana, fechada numa economia de subsistência familiar e comunitária baseada numa agricultura primitiva que tinha por fundamentais produtos a batata, o milho, o feijão, o trigo e o centeio, e por instrumentos o enxadão, o machado e a seitoira, o carro de madeira, o arado e a grade - tirados por bois ou jumentos, e os meios de transporte eram o cavalo e o macho.
As trocas de produtos, por vezes ainda directas, eram feitas em feiras e mercados de periodicidade regular.
Tratava-se, portanto, de uma aldeia arcaica, perdida num país arcaico, permanentemente forçado a perder todas as oportunidades de uma revolução industrial...
in Ser e Ler Miguel Torga
de Fernão de Magalhães Gonçalves
É sempre com profunda emoção que saboreio estes deliciosos textos do meu primeiro Amor…
ResponderEliminarGratidão...