No "mou" tempo!
por Jorge Lage

O tempo anual no meio rural media-se, e ainda se mede para os mais velhos, pela vida das pessoas, pelas colheitas dos frutos e outras fainas agrícolas do que pelos meses do ano. Depois, com mais precisão, era marcado pelas feiras e romarias e pelo calendário litúrgico. Ainda havia outros factos ou tempos nefastos para datar períodos mais longos.
Raparigas do meu tempo,
Rapazes da mesma idade,
Já que eu me caso tão cedo,
Gozai vós a mocidade!
Era o tempo de solteiro que passava para quem se decidia pelo casamento.
Nesse tempo, o rapaz casava com a rapariga e a rapariga escolhia um rapaz.
Para trás ficava o «tempo de escola», para quem a podia frequentar. Ficava,
ainda, «o tempo de rapaz» e «o tempo de rapariga», que, geralmente, quase
coincidia com a adolescência, «o tempo de solteiro». A pessoa que casava
passava a ter o estatuto de homem ou de mulher adultos. Quando não casavam
cedo era «a sorte» que ditava esse estatuto. E lá vem:
– No mou tempo de tropa. A tropa iniciava-se quando se assentava praça.
Mais tarde, se um do casal enviuvava mais cedo, recordaria com saudade ou
alívio, «no meu tempo de casado». E lá vêm as expressões:
– Era um santo dum home, dava-me tudo o que podia!
Ou então:
– Não era quem se pintava! Deus o tenha em bom lugar, mas tinha mau génio
para mim e para os filhos. Às vezes até se vingava na cria!
Para medir o tempo mais distante ou situar algum episódio, atirava-se com a
expressão:
– No tempo dos antigos!
Ou aquelas gestas heróicas:
– Contavam os mous avós!
E lá vinha o conto ao serão ou a narração, apimentados um pouco, porque a
imaginação e a realidade se cruzavam e se cruzam. Falava-se do cão que para
salvar um viandante dos lobos, lutava com três ou quatro até à exaustão e
vencia. Ou do trabalhador rural que brincava com a sorte e saía-se mal.
Dos episódios vividos, ainda ouvíamos o meu saudoso pai, dizer:
– Quando era garoto, no tempo da Traulitada, estava a mijar da varanda abaixo
e vi aparecer, em fila, os militares do Paiva Couceiro. Corri logo a avisar a
minha mãe.
Ou ainda:
– No tempo da Primeira Grande Guerra, partiam comboios atestadinhos de
rapazes novos. Vinha do quartel de Bragança. Nem deixaram parar o comboio,
não fugissem alguns. Foram para lá sem instrução de guerra e a maioria
ficara na mastregada. Os Alemães entravam neles como em cebola. Coragem e
destemido foi o Milhões de Murça (com quem falei no 10 de Junho de 1967 em
Vila Real). Chegou para eles! Barreu-os com a metralhadora, alguns até
ficavam de pé mortos encostados uns aos outros! Cá está a ficção entrelaçada
com a realidade.
E também:
Durante a epidemia (a pneumónica), quando eu era garoto, morreu gente como
tordos. O Ti António Cuco apanhou-a e para se livrar de morrer bebeu tanta
aguardente, que com as dores se espojou na terra que tinha no Calvário de
Cima, dando urros de desespero e dor. Mas salvou-se.
Outro tempo que marcou a vida do meu pai foi a Guerra Civil de Espanha. E
contava que os Franquistas fizeram uma mastregada na recta de Toledo. Que o
sangue dos Vermelhos correu pelas valetas como auga.
Os mais antigos ainda se lembram do tempo da fome que coincidiu com a Guerra
Civil Espanhola e dizia-se que o Salazar desviava os géneros dos portugueses
para as tropas de Franco. Este tempo de racionamento e de fome ainda
abrangeu a Segunda Grande Guerra. Aos meus pais, em começo de vida,
valeu-lhes o crédito do meu avô Manuel, que era amigo do Guicho. Era só
chegar ao sóto e lá tinha a mercearia e o bacalhau guardado.
Tempos difíceis dirão alguns leitores, e nós também!
Mas, voltando ao tempo anual, ouvíamos falar, «no tempo do frio» para
definir o Inverno e media-se pelo tempo mitológico dos gregos, celtas e
romanos, em que Zeus ou Júpiter arbitrava as contendas das divindades, com
uma sabedoria salomónica. Certos raptos das mais belas divindades, tinham
sentenças que contentavam, em parte, os dois campos de interesses.
Claro que ao Inverno se contrapunha: «no tempo da chuva». Se esse tempo era
caldeado com neve ou ventanias, falava-se no «Inverno duro» ou no «tempo de
invernia». Por vezes surgiam as grandes cheias. Umas vezes arrufava-se a
ribeira de Suçães e ganhava fúria serra abaixo e desgraçava a gentinha dos
Eixes, onde estavam os meus avós, Rosa e Manuel. Alguns ficavam sem o
sustento da cortinha e, nas aflições maiores, havia sempre um pão ou uma
cesta de batatas, da minha avó Rosa, que rima muito bem com daimosa.
Outras vezes era a ribeira de Ritórto que desgraçava as gentes das Terras de
Lila, devido às traboadas que caíam nas bordas da Serra de Santa Comba.
Outras cheias, eram devido ao derreter da neve e gelo das serras de Espanha.
O rio rugia como um leão cavernoso e ameaçador, tornando-se mais furioso
quando galgava a Azenha do Sá Lima, a Azenha do Capitão Ilídio ou a Azenha
do Riça (na Maravilha). Ia de monte a monte e estroncava oliveiras pelos
campos.
Em «tempo de escola» o melhor que podia acontecer era o Rio da Barca ou rio
Tuela enfurecer-se e ir de monte a monte. As crianças, pedíamos que a barca
não se desse e assim fugíamos ao degredo que era a escola dos castigos e da
pancada.
E, «no tempo do calor» era «tempo de rega», tinha-se a sesta, os dias
grandes, as escapadelas para o rio, o início de noites em família, falava-se
das fainas agrícolas, das colheitas, das festas e romarias. Falava-se da
Senhora da Serra e do Santo Ambrósio e das merendas entre as procissões e os
arraiais. Qual era a festa que tinha a procissão mais bonita e na que
atiravam mais fogo. Seria a Senhora dos Remédios ou a Senhora do Amparo? Se
os fogueiteiros de Blarandelo eram maiores que os de Lanhelas? Se o andor da
Senhora da Ascensão levava mais notas que o da Senhora da Saúde? Para a
Senhora da Saúde (em Valpaços) os de Vale de Salgueiros davam o risco com as
maiores merendas comidas nas fragas junto ao santuário.
«No tempo da seca», que acontecia em fins de Agosto e prolongava-se por
Setembro, era preciso regar o renobo e as estacas das oliveiras das
encostas, ao cântaro ou à pipa, para se salvarem e se fazer mais um bonito
olival.
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